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Reclusão


I.


Dobro a toalha de mesa como um Belmonte. Ao sentar-me no sofá imagino que sou portador da solenidade de um velho patriarca. Ali idealizo afectos perdidos que nunca existiram e ordeno a realidade do dia que - que dia é hoje? - passou, antes de perder-me em afectação sensível.

Num dia habitual, chego à conclusão de que a vida não é tão má depois do telejornal. Seguidamente, creio que a beleza e as suas reformulações pragmáticas - a honra, o orgulho, o pundonor, a palavra, a humanidade- são a redenção que podemos ter. Por este caminho, abandono a ideia de revolução a quem tem frio, a poesia a quem tem fome, e quase chego a aceitar a pertinência de um militar-chefe que deflecte a ideia messiânica. Esse tipo diz como as coisas serão, mas apenas a crua informação necessária, não existirão frivolidades.


II.


A hora negra segue-se ao almoço. Relembro deturpações do que vivi, revivo pesadelos que imaginei durante a noite, temo estar recluso dentro da minha cabeça de maneira que não tenho movimentos próprios. A maquinaria industrial é um vitalismo do corpo, à maneira de Otto von Gierke, e a opressão surge como se fora uma ideia própria, corre a história católica da inculpação autónoma, e eu sou o tal funcionário que espera o correio que nunca vem, agarrado pelo terror à cadeira e ao monitor. Toda a minha gente continua a passar horas em que anda desencontrado, como à espera do comboio na paragem do autocarro. Eu.

Por volta das 16h.30h reparo que voltei vivo dessa viagem. Mas agora é tarde. Que dia perdido! Quem me dera estar ocupado! O lanche impreterível é a exteriorização em acto que religa a noite e o dia. Tiro café da máquina, funcionário produtivo, atrasado, preocupado, pois não é assim que se deve ser e estar? Ansioso. Mas ao menos vou já pensando, dada a cafeína, que sou entre milhões de subviventes regulares. Pacatos, ordenados, cansados, que tudo está mais ou menos previsto pelas vidas que eles viveram e as suas margens comprimem o leito, sem derrubar.

Uma vez escrevi a um tipo que dizia querer ser escritor, ou pior, que aventava ser meu amigo. Íamos começar um movimento literário, algo grande. Gente pequena se faz grande, retesada a cobardia. Os ingredientes dou noutra história.

Fui ao Castelo resgatar alguma inspiração chorosa e lá de cima vi correr, prova das chuvas e, quem sabe, pensei eu, da necessidade de arrasar a tradição, um rio maior ao lado do rio convencional. Os campos alagados davam a impressão de haver por ali outro caminho, muito mais largo. Um rio verdadeiro, maior, original. Uma imagem tão espantosa quanto a impressão causada, à vista de uns versos que eu escrevera sobre canteiros e regadio, fazer medrar os assuntos em plantações diversificadas, separar as colheitas e a semente.


III.


Ao destape de uma bock, enfatuo a alienação de um pai de família. Encontro uma forma líquida e gasosa de ser eu a escolher o momento. Encorajo-me naturalmente a proferir impropérios, sentenças morais e esgares centenários. Aqui se inclui praguejar sobre o olhar manhoso dos vizinhos ou o modo como o Justo, meu cão, não carece de afecto - em prejuízo da minha carestia cada vez menos inconfessada.

Afinal, o mundo está falho de Homens como eu, e o onze do Sporting também. Esse génio da província está comparecendo ao fim do dia e afecta desdém superior: a capacidade de se não comover com a miséria circundante ou sequer de si mesmo. E, porém, não existem vestígios de acinte na garrafa.


IV.


Sinto a tua roupa íntima molhada e vou tirá-la. Ajudas-me a superar a fúria. A roupa acabada de lavar tem um toque agradável. Que é tão bom estendê-la sem ouvir a minha Mãe a gritar, a ensinar-me ou a desensinar-me a estender as camisas. Segue-se uma pianada: dou comigo no teclado do computador a usar o dedo mindinho como ouço fazer na aparelhagem.


V.


Tenho organizado aulas, manuais e coisas vespertinas. Mas sem escrever quase desaparece a distanciação e a capacidade de observar, e mais do que isso, o espanto de que se faz o que faço. Só esta arte demonstra que o ontem criou uma desordem que pode ser reinventada hoje. Entretanto, mudam-se as tias, as manias, as pandemias, e as bolachas-maria; ficam apatias que registo como faltas morais e falhas de carácter, a solucionar logo que possível. Voz ao deus que passeia. Ele diz não conseguir inteirar-se nesta mediocridade dourada, pese embora os vários convites nesse sentido. Sem real não se pode ser, e como evitar a estrumeira dos dias con-finados?


João Mendes

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