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O Tempo em Fatias

Quando me convidaram para escrever este texto, e tal como acontece sempre que me dão liberdade sobre temas, a minha (pouca) criatividade fecha-se em caixinhas, até chegar a uma deadline, como boa procrastinadora que sou, e escrever sobre a primeira coisa que me ocorre. O caminho mais fácil é sempre escolher um tema ligado à minha profissão, mas hoje optei por contornar essa estrada e atalhar pelas experiências pessoais.

Em dezembro, regressei à cultura ao vivo e a cores, para um concerto de um dos meus artistas nacionais favoritos, numa espécie de tradição de natal desde há uns anos. Este ano, porém, escolhi ir a este concerto sozinha: não porque faltasse companhia, mas por escolha meramente pessoal e, por fruto das circunstâncias, sentei-me praticamente uma hora antes do espetáculo começar.

É raro sentirmos que temos tempo. Tempo do verdadeiro: aquele que não nos é apressado pelo relógio, pelos prazos, pelos objetivos, pelas listas de produtividade ou pelos afazeres que nos blindam as agendas. Tempo verdadeiramente livre, para usufruir como bem entendermos. Para pensar, para estar, para ser. E foi nesse tempo, nessa hora livre que surgiu do nada, de telemóvel sempre guardado no bolso, que fui observando as cadeiras a encher. Observei muitas pessoas que também decidiram (ou as circunstâncias!) ir sozinhas também, e não faço ideia se isso acontecia noutros tempos. Vi menos telemóveis empunhados, e creio que mais olhos viram, em direto, duas horas e meia de um espetáculo que, na verdade, já vinha a ser montado grande parte de todas as segundas-feiras que passámos em confinamento. Vi muita sede de estarmos ali – agora ao vivo, e como há dias li numa rede social a propósito deste concerto, não havia estranhos naquela moldura humana, porque nalgum direto de uma qualquer rede social, já nos teríamos cruzado, com ou sem copos de vinho na mão.

Durante duas horas e meia, o tempo foi degustado em fatias, tema a tema, instrumento a instrumento, surpresa a surpresa. Saboreado como aquele gelado na tarde de verão, ou aquela comida de forno num dia frio de Inverno: sem pressas. Apreciarmos essa fatia de tempo, sozinhos, permite-nos dimensionar tudo às nossas necessidades e ao nosso ritmo. Estamos tão habituados ao ritmo dos outros, que tantas vezes não conhecemos o nosso, e é nessa solidão escolhida e consentida que tudo isso se consegue absorver.

No final do concerto, o Tiago sentou-se num sofá, simples, como todos os que temos lá em casa. As luzes baixaram, o público serenou, e aquela “Viagem”, tocada à guitarra e cantada quase em surdina, transportou-nos a todos para aquelas segundas-feiras de confinamento, em que não sabíamos se tudo ia correr bem, mas onde tentávamos acreditar que sim. Mais do que isso: transportou-me para os sofás lá das nossas casas, onde (quase) todas as noites nos sentamos, e onde depois de tantas luzes e cores e danças do nosso dia-a-dia, paramos em nós, nas nossas “viagens”, em silêncios tantas vezes ensurdecedores e em gritos mudos – ao nosso ritmo, no nosso tempo, do qual tantas vezes fugimos porque é difícil olhar para dentro e termos de lidar com as nossas gavetas nem sempre assim tão bem arrumadas.

Que a cultura é um bálsamo, já sabíamos. Que enquanto houver música, jamais alguém estará sozinho, idem. Mas que o tempo se corta em fatias e se aprecia no ritmo de cada um, duvido que seja uma verdade universalmente conhecida. Haja coragem para sermos o nosso tempo, o nosso espaço, as nossas escolhas, sem que isso dependa de terceiros.

“infinito amor em cada asa / de braços abertos para casa” – que saibamos ser sempre a nossa melhor casa.


Marta Costa,

Psicóloga

Gabinete de Apoio Psicológico, FDUL

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