Há cerca de ano e meio andava em voga uma prática de destruição de estátuas da época dos descobrimentos e de figuras análogas à escravatura, à subjugação humana, ato em que o “homem é o lobo do homem”, como Hobbes refere em “Leviatã”. Todavia, será legitimo tentar moldar a história dos acontecimentos de acordo com os valores dos dias de hoje?
Aquando da morte de George Floyd às mãos da polícia, em maio de 2020, começava uma onda de protestos antirracistas que rapidamente se disseminaram por todo o mundo pela forma de vandalização de monumentos alusivos a épocas e figuras que se pensavam representar a exploração humana baseada na cor da pele. Um exemplo desta prática é uma estátua na entrada do museu de história natural de Nova Iorque, que homenageia o notável Theodore Roosevelt, ex-presidente dos EUA, conhecido pelas suas preocupações ambientalistas, que será retirada por fazer alusão ao colonialismo. A cidade de Boston foi também atingida por esta onda de protestos e uma estátua em que Lincoln está com um homem negro de joelhos, na origem da abolição da escravatura, foi vandalizada. Como é habitual, tudo o que começa na “terra das oportunidades” acaba por atingir o “velho continente”. Desta maneira, o movimento apelidado de “Black Lives Matter” iniciado em 2013, que apenas atingiu carácter global o ano passado, chegou à Europa. No Reino Unido, manifestantes derrubaram uma estátua do comerciante, mas também traficante de escravos britânico, Edward Colston em Bristol. Na Bélgica, monumentos de homenagem a Leopoldo II, o rei do século XIX cujo regime contribuiu para a morte de milhões de pessoas em África, também foram danificados ou removidos. Em Portugal a vítima foi Padre António Vieira que, como sabemos, na sua célebre obra “Sermão de Santo António aos Peixes” defende os ameríndios, levando também uma vida missionária pedindo dignidade e tolerância para os povos subjugados.
Portanto, a análise tem de ser holística, não se pode avaliar apenas uma das dimensões da vida de uma pessoa. A imortalização de uma figura através de uma representação sua, decerto terá sido feita por essa pessoa ter contribuído para a comunidade. A título de exemplo, Abraham Lincoln aboliu em 1863, a escravatura nos EUA; destarte, acusá-lo de subjugar alguém consoante a sua cor da pele será talvez injusto. Exatamente 100 anos depois, em 1963, Martin Luther King Jr. deu voz a “I have a dream”, um dos mais célebres discursos de sempre que transmitia a vontade de uma vida tranquila para os negros. Ironicamente, o ativista fê-lo com a estátua de Lincoln – o grande emancipador - como pano de fundo, com respeito e consideração pelo antigo chefe de Estado ter levado a cabo um ato tão progressista para a sua época. Quase 60 anos depois da proclamação de King, o seu sonho ainda não se cumpriu. Mas será a manipulação da história o caminho?
As estátuas são uma representação de algo ou alguém, uma alusão, quer seja àquilo que se pretende demonstrar quer à técnica artística utilizada. Desta forma, uma legitimação da vontade. Será vontade de clarificar e conhecer o passado ou glorificar os feitos da nação? O passado, por mais investigado e documentado que esteja é sempre uma realidade turva, da qual não existem totais certezas. Se se destroem estátuas, por que não destruir também livros de história? Decerto que estes também contêm registos de algo menos integro para a espécie humana assim como as estátuas representativas de personalidades que em algum momento contribuíram para a subordinação humana ou para outros acontecimentos recrimináveis. Todavia, com mais ou menos erros, os livros de história são fulcrais para que compreendamos de onde viemos e como aqui chegamos. Não são uma forma saudosista de ligação a outros tempos, mas sim uma conexão com modos de agir e de pensar. É através deles que temos acesso à nossa identidade enquanto espécie, mas também enquanto nação. É por isso, que a história do colonialismo assim como o genocídio ocorrido aquando da II Guerra mundial, não podem ser eliminados das ruas nem das salas de aula.
Em última instância, tenho em crer que sendo ou não simbólicas da segregação racial as figuras imortalizadas pela forma de estátuas são importantes para a história. Desta feita, nada justifica a destruição de monumentos que relatam factos e representam personalidades históricas. Os acontecimentos não podem ser apagados e de qualquer forma fazem parte do nosso percurso e evolução enquanto espécie, permitindo-nos evitar a repetição de atos desumanos.
Maria Sales Fernandes
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