Para o António, a Beatriz, a Camila, o Gonçalo, o Henrique, a Maria, a Marta, o Miguel, e o Ricardo
O problema da tolerância tem-se consumido entre a vertente ideal, próxima da sua origem, e a vertente processual, próxima do significado actual, enquanto acordo de princípio quanto à existência de um diálogo. Creio que falta esclarecer o sentido e o alcance material do tema. A igualdade complexa, ou o princípio constitucional da igualdade, salvaguarda o espaço entre mim e o outro?
A questão pode ser respondida de forma trivial. Os direitos fundamentais, a igual dignidade, a liberdade de consciência, religião e culto, a liberdade de expressão, o direito à educação, formam uma rede bastante próxima de uma mescla dos conteúdos históricos da tolerância.
Ao contrário do que acontecia, hoje supomos não precisar da tolerância para obter igualdade e liberdade. Reflexamente, precisamos certamente de equalizar e libertar a tolerância da sua concepção desequilibrada. Essa concepção tem apoio etimológico: tolerar significa “submeter-se a”, “aguentar a carga”. Deste modo, quem tolera está em posição de autoridade em relação a quem é tolerado, e isso não passa o crivo da igualdade. A tolerância do poder é uma permissão e isso está errado.
Tem sido referido que o acto de tolerância acontece por três passos sucessivos: a objecção, a aceitação, e a rejeição. Creio haver boas razões para contestar o alcance epistémico desta forma de mecanicismo. Cada pessoa é “Eu” e é “Outro”, conforme o contexto normativo de referência da cultura dominante. Precisamente, não faz sentido aceitar uma visão dominadora da tolerância, isto é, o primado da mundividência de um ser superior que decide tolerar-me, como na expressão “eu tolero, mas não aceito”. Talvez esta visão possa dar lugar a um prisma solidário e à concepção pública de justiça, com diferenças culturais e pluralismo ideológico.
Talvez devamos enfatizar certa contribuição do liberalismo: a tolerância é uma virtude social que ajuda a guardar espaço entre a socialidade e a autoridade. Por outras palavras, a tolerância não é uma característica da acção do Estado. A autonomia das pessoas permite a acentuação das suas diferenças. Não cabe à acção pública “tolerar”. A tolerância deve expressar o equilíbrio da argumentação na vida pública, entre a violência e a apatia. Não se toleram, portanto, concepções de vida privada. No centro do debate, da argumentação e da crítica. Assim, creio ser necessário conceber a tolerância como reconhecimento mútuo entre pessoas iguais.
O famoso paradoxo da tolerância está exaurido. As faltas económicas e democráticas de igualdade e liberdade criaram as condições de injustiça para os impulsos voluntaristas do Homem abandonado à sua sorte. A pergunta que se deve colocar hoje é: “como devemos tratar os tolerantes?” A integração das minorias, como linha de demarcação das democracias liberais face às ditaduras totalitárias, deixou a maioria das pessoas confusas, e, como há um século, sem saída. Duvido que estejamos ainda a tempo da responsabilidade política e da responsabilidade individual.
O lento definhar do “eu liberal” deixou os laços comunitários ao hiperconsumismo e ao neoliberalismo e o princípio da concorrência é oposto ao diálogo. Entretanto, os discursos de ódio e racismo aproveitaram a brecha resultante da falta de inclusão social promovida pelo Estado e o extremismo mediático grita como se pedisse socorro, qual cavalo de Tróia. Aproveitando a lógica concorrencial do sistema - “quem grita mais alto leva o prémio!”-, eles diferenciam-se do “pensamento único” e acabam por ser incluídos.
Isto é também explicado pelo facto de a posição activa da razão humana ser confundida com a intolerância enquanto rejeição do Outro. “Devemos ser tolerantes ou intolerantes num país em que meia dúzia de tipos controla as opções económicas e políticas?” O apelo à indignação expressa-se algumas vezes deste modo. Ser tolerante seria aqui ser complacente. Isto soa ao passado pátrio: a tolerância entrou pelo liberalismo constitucional português como expressão do domínio religioso, convertida em política. Dado o transcurso pouco liberal do séc. XX, relembra-se Voltaire, quando dizia que a tolerância era um assunto metafísico. Essa idealização moldou várias declarações de direitos e comités da UNESCO, em ordem à paz e à prosperidade universais.
Ora, a tolerância é um princípio processual de acordo quanto à existência de um diálogo. Deve ser, mais do que isso, a exigência de uma liberdade crítica ainda inédita, em substituição da consciência colectiva atormentada pelas ideias míticas do Portugal passado que se reflectem, como vinhos novos em odres velhos, no Portugal futuro.
João Freitas Mendes
2 de Junho de 2021
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