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Estado de ignorância

Nos dias de hoje, há um tema que corre o mundo, uma conversa comum a todos, aos velhos, aos novos, aos homens, às mulheres, aos intelectuais e aos não tanto, mas o que importa é que corre as bocas do mundo e, se continuarmos como estamos, vai continuar a correr. De que tema mais poderia estar a referir-me senão a nossa tão famosa pandemia, física e psicológica, que já está tão intrínseca em nós que não nos lembramos da vida sem isto. Acho que uma das piores coisas que a pandemia revelou foi mesmo a gigante estupidez humana de dizer que sim, porque sim, a quem acha que tem mão no mundo e esta democracia “desmocratizada”, que nos invade cada vez mais, não parece estar com intenções de desaparecer.

Já dizia Habermas que a democracia é sobretudo um processo de decisão, não importando muito o conteúdo dessa tal decisão, mas sim o modo como se chega à mesma. Este filósofo alemão já dizia no século XX que o importante é a discussão e a comunicação, apresentando-se, sempre, a racionalidade argumentativa, a igualdade- que é, ou pelo menos deveria ser o princípio fulcral da discussão da democracia- e o peso da maioria- que, feliz ou infelizmente, surge como critério de decisão. Porém, Habermas admite, como democrático, que há aqui um problema: qualquer conteúdo da decisão da maioria, que é visto como critério da verdade (sabe-se lá o que isso seja); não nega que a democracia pode, à luz do princípio maioritário, criar decisões muito pouco legítimas, pelo facto de tudo depender da tonalidade dos ideais da maioria de um determinado grupo, que, vemos hoje, como vimos ao longo da História, podem não ser os melhores. Desta forma, é possível confrontar e comparar este estado de emergência com um verdadeiro Estado de Direitos Humanos, que nos era conhecido antes “disto tudo”.

O Estado de Direitos Humanos alicerça-se na pessoa humana, que se mostra, com base nos valores de liberdade, dignidade e justiça, como limite ao poder, ou seja, alicerça-se na pessoa humana com base no pensamento kantiano de que a dignidade não tem preço e cada pessoa é sempre um fim em si mesma e não pode, de maneira alguma, ser usada como objeto, sendo, então, apresentada uma concepção existencialista, que faz uma avaliação da pessoa concreta, ou seja, a dimensão da concretização que cada Homem representa Dentro deste gigante tema, a doutrina corresponde na abundância, no entanto, uma das principais visões que é relevante referir é a do Papa João Paulo II, que assenta na ideia de que os Direitos Humanos são o núcleo essencial da democracia, de que a pessoa é o fundamento das instituições políticas e de que a democracia só é verdade se o seu conteúdo estiver ao serviço da pessoa. Um Estado de Direitos Humanos tem um modelo de sociedade política alicerçada no respeito pela outra pessoa, representa a garantia e a defesa da cultura da vida, passa por uma vinculação internacional à tutela dos direitos fundamentais e apresenta-se como um conjunto de normas constitucionais com eficácia especial, pela dimensão tripla da dignidade: a sua dimensão vertical consiste na relação da pessoa com o Estado e cria uma obrigação do Estado, não sé defender e proteger, como, também, garantir a dignidade da pessoa, a sua dimensão horizontal refere-se à projeção da dignidade da pessoa em relação às outras e a sua dimensão auto-referencial , relativamente ao facto de cada um de nós não poder alienar a sua própria dignidade, pois, assim como Hegel dizia, estamos condenados a ser pessoas, logo estamos condenados a ter dignidade e não nos podemos dispor dela.

Em contrapartida, o Estado de Direitos Humanos confronta vários desafios, como a existência de concepções totalitárias, a hipervalorização da opinião da maioria, a vigilância total, a intolerância, tanto a nível social, como a nível religioso e político. Contudo, aparentemente, o Estado de Direitos Humanos apresenta, agora, um dos maiores desafios de todos, uma implementação ilimitada e quase infinitamente temporal de um estado de emergência. Não digo que esta implementação terminará com a concepção anteriormente adquirida por nós do que é ser livre, a todos os níveis. Digo, antes, que penso que, certas medidas, não deveriam ser tão cegamente aceites como são. Caso sejam, seremos como Sócrates que, acusado de corromper a juventude e condenado à morte, rejeita fugir e pergunta “que serão as leis da República se fugir ao cumprimento da sentença?”


Concluindo, pergunto: liberdade ou entrega total da vida pelo bem de um Estado “desmocratizado”?



Mafalda Nunes

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