(I) Alguém disse que as grandes pirâmides são presididas por uma lógica de acumulação ao longo do tempo.
I. Ilusão do tempo: Contínuo acrescento, eliminação que o tempo traz é ignorada.
− Ignora momentos de explosão da grande pirâmide. No ponto X-300 anterior a X havia menos 300 de acumulação. Mas num ponto seguinte, por exemplo no ponto que seria X- 150 (que não tem de estar no meio, pois mede a acumulação da grande pirâmide e não do tempo) houve uma explosão. A grande pirâmide rebentou de alguma forma (bancarrota, guerra, fome etc), ficando X–1000 A seguir, a pirâmide cresceu exponencialmente até chegar a X. Os acrescentos “inevitáveis” não são assim tão importantes quanto os momentos de explosão.
− Ilusão historicista “aconteceu assim, logo é inevitável”
− Ilusão da prova “ignoro prova silenciosa em contrário” (i)
Como não ignoro prova silenciosa, deve referir-se que a pessoa estava a falar em geral e não de modo universal. Mas é preciso ter em atenção para não transformar o geral em universal sob pena de vivermos demasiado confortáveis. Atenção que posso estar a partir de um pressuposto causalista — + grande pirâmide ⇒ Explosão. E se isto for verdade, não quer dizer que as explosões foram determinadas pela simples lógica de acumulação. Será que não? Narrativa reduzida e mecanicista. Mas o crescimento do Estado-Nação trouxe com ele uma burocracia enorme, centralização, exércitos enormes, armas de destruição potentes e possibilidades de destruição sem que ela seja visível aos decisores da mesma, pense-se nos drones como um dos muitos exemplos. O crescimento da grande pirâmide trouxe com ela os assassinos (em massa) de secretária e o arrasamento completo em caso de conflito. Quando estes grandes monstros entram em conflito a coisa torna-se feia. A acumulação burocrata traz complicação, fragilidade por cada vez maior falta de domínio dos processos naturais. Pode tornar-se uma gangrena dependente do sangue dos outros e estorvo aos mesmos. A sua explosão dá-se com bancarrotas, fomes, dependência interna e/ou externa de quem domina certos processos naturais, sem que isto seja apercebido ou se traduza necessariamente nas relações de poder imediatas, tal como o senhor está dependente do seu escravo. Finalmente, é sequer desejável deixar acumular ainda que não se possa reduzir tudo a uma narrativa simples? “Ao longo da história, as burocracias foram presididas por uma lógica de acumulação” — e se isto continuasse até ao infinito? Manifestamente impossível. Haverá um ponto de não retorno em que perdemos o contacto total com a natureza e não sobreviveremos em caso de colapso do que tomamos por garantido. Ou podemos tornar-nos um país de serviços (de burocratas servis) para os outros? Como quer que seja, é manifestamente impossível que a lógica de acumulação, a existir, continue inexoravelmente sem nos levar à explosão.
(II) Deparei-me com isto “Não consigo entender porque é que é tão importante isso da simetria” — Mao Zeodong.
Talvez seja por não entender a sua importância que matou milhões à fome. A simetria é “redundante”, tal como o olho, a orelha e a perna têm um duplo. O que é repetido parece redundante, mas pode ser o mais útil... pode ter uma função não imediatamente discernível. Quando os sistemas se montam de forma a que milhões dependam exclusivamente de uma autoridade central... A tese fantasiosa de Francis Fukuyama (ii) sobre a necessidade de uma maior centralização política nos EUA devido às redundâncias institucionais (conflitos de competência) e vetocracias que bloqueiam a acção colectiva eficaz enganou-me durante muito tempo e talvez seja tempo de a considerar à luz de uma leitura orgânica e não de eficácia reduzida aos objectivos do Estado-nação, e desse modo rejeitá-la. Não é isto que nos dizem também a propósito das grandes pes... perdão, grandes empresas? Economias de escala...
(III) A simetria é simultaneamente bela e redundante? Talvez o maior erro seja tomar como inútil aquilo que é naturalmente belo. Em que medida se pode aplicar semelhante raciocínio aos sistemas visto que temos tendência a fazer uma distinção entre o convencional e o natural como se fossem dois mundos à parte? Exemplo: Raciocínio de optimização — «mais decisores implicam maiores custos, cortem-se as redundâncias» ou os «robots são mais baratos e eficientes»; Raciocínio Orgânico — «Deixem-se estar algumas redundâncias». Mas não nos estamos a contradizer, não está neste exemplo a ideia de que a descentralização levaria à proliferação da burocracia? A descentralização não tem de seguir uma simples lógica de acumulação — Estado Central + entidades descentralizadas — que adiciona dignidade a certas funções como uma operação de cosmética, mas mantém tudo igual ou pior. Deve cortar decisivamente o poder daquele. Porquê?
(IV) “Os Esquemas em Pirâmide têm duração curta no privado” (iii) — excepto que é no privado que se formam os grandes esquemas em pirâmide, os Estados. Os Estados não são realidades etéreas, antes surgem da convivência humana. Não podemos pressupô-los como realidades fixas e eternas e depois dizer simplesmente que os esquemas em pirâmide têm duração curta no privado, como se estivesse escrito em pedra o que é esquema em pirâmide duradouro por via da sua qualidade formal. É tendencialmente verdadeiro em certas condições e uma delas é que privado não seja uma simples qualificação formal, pois também o privado que vive à sombra do Estado a ele se assemelha. Já não está no âmbito do privado, pois o seu falhanço está escudado por aquele (evidentemente que estão aqui em causa os grandes e não os pequenos que dele precisam para sobreviver). E aquele privado é uma realidade política ilegítima. Como se foi a sociedade que assim decidiu (se calhar não foi...)? E o que é Estado? Muito pressuponho que pode ser desenvolvido — Burocracia, segurança, autoridade, tendencial monopólio da violência legítima. (V) A carta de Nuno Crato (iv). Diz o ex-ministro que um novo governante, neste caso ministro da educação, não deve brincar com um componente sem saber que interações explosivas pode ter com os outros componentes do sistema. Portanto, devemos ser contra a tentativa e erro na gestão central dos assuntos? Sim, de acordo pois os erros são muito mais caros para o todo, mas se calhar é por isso que devemos ter menos coisas dependentes de gestão central. Para deixar de multiplicar os erros por cadeias enormes.
(VI) A substituição de Deus pelo Estado... não foi a melhor a substituição.
(VII) A acumulação, a lógica linear, esconde os acidentes de percurso. Vou ao passado medi-lo com uma régua e desenho uma linha direita óbvia. Mas o passado não foi essa linha direita. A acumulação é um resultado final, um defeito da visão que olha para dois pontos, compara-os, e estende o resultado aos «termos» intermédios. É uma lógica generalizada a todos os pontos devido à comparação entre dois — um início e um fim (frequentemente o presente). É a versão temporal da falácia da agregação.
(VIII) “Não quero economia em tudo, quero Direito em tudo”. Não quero economia em tudo, mas também não quero Direito em tudo. Especialmente porque não sei o que querem dizer com “Direito”. Quererão dizer que devemos pôr Leis em tudo o que mexe? Juristas em tudo o que mexe? Valores em tudo o que mexe? Pretensões imperialistas que se escondem sob um nome bonito. É a nossa mundividência que queremos impor. A nossa razão.
(IX) Tanta perfeição nas coisas que criamos e tão pouca nas que já cá estavam!
1. Possibilidade de sermos omniscientes ou próximos disso. 2. Direito enquanto realidade valorativa perfeita para a qual devemos tender. Tirania dos valores, dos fins, do explicável.
(X) “Temos de respeitar o que a democracia produz” (v) no epitáfio da democracia. (?)
(XI) Intolerantes com os intolerantes connosco, mas não interventivos nos assuntos dos outros só porque não estão de acordo com o nosso ‘bem’.
(XII) Os Estados que crescem levam a um aumento do carácter não voluntário. Narrativas empacotadas, danos ‘colaterais’ — não intervenientes directos mas participantes formais do conflito —, decisores que arriscam a vida dos outros. Uns poucos eliminam milhões. Conscrição/recrutamento contra a vontade (conflito é distante das pessoas recrutadas), recrutas distantes dos (burocratas) recrutadores. Estatísticas. Carne para canhão. Claro que não se devem ignorar os conflitos mais espontâneos, aqueles que são só ou são também entre as populações e não apenas entre máquinas abstractas como o são os conflitos motivados pelo topo.
(XIII) A maior desgraça da vida é a distância que nos separa das consequências dos nossos actos. Podemos passar a vida a pensar que somos bons e afinal sofríamos de miopia. Condenável? Certamente se nos colocarmos conscientemente nessa posição de poder ser míopes (vi).
(XIV) Enquanto corríamos no outro dia, o meu amigo Rodrigo informou-me de que um qualquer decisor norte americano, para justificar a intervenção no Iraque, recorreu à dicotomia realidade|abuso da realidade do seguinte modo — a realidade é o Iraque ser uma democracia e o abuso é todas as atrocidades que foram cometidas. A realidade é o papel, a declaração de princípios, e o resto são danos colaterais.
(XV) Generalizar está muito próximo da previsão do futuro. Universalizar está lá.
(XVI) A ilusão causalista bem explicada por um óptimo exemplo de Nassim Nicholas Taleb (vii). Dizem os historiadores que tensão leva à guerra. Mas esta explicação pela positiva (causa definida para efeito/fenómeno conhecido) tem como negação um único caso em que a tensão não levou à guerra. Mas imaginemos agora — que dirão aqueles em resposta? Que a tensão acumulada não era suficiente nesses casos. À qualidade juntam uma quantidade. Máquinas ou leis da física, portanto. Há uma quantidade óptima de tensão.
(XVII) Um certo tipo de pensamento religioso parece salvar a nossa vontade. Aceita que somos criados, mas dá-nos autonomia. Alguns historiadores pensam que é tudo uma questão de quantidades no cérebro. Pior é quando se referem ao cérebro de nações.
(XVIII) Paradoxal que possamos recorrer à tradição religiosa para escapar à tirania do explicável.
(XIX) Talvez não estejamos a sair da caverna platónica, mas a entrar nela. Será que o colectivo é que está fora dela? A divisão do trabalho faz com que o conhecimento esteja no agregado, mas este não se reparte igualmente pelas suas partes. Mas o que é o agregado... o que é qualquer agregado?
(XX) Sobre a corrupção. Não precisamos de violar Direitos Fundamentais para prevenir. Só precisamos é de prescindir de mandar pessoas para a prisão. Reações agressivas sem prisão. Deixemos os fala-baratos dos Direitos Fundamentais no seu canto. Não se toque no in dubio pro reu, mas não nos deixemos ser fintados pelos penalistas e jusfundamentalistas. Estes têm pretensões monopolistas sobre a prevenção que os servem a eles. Quanto ao legislador, o enriquecimento ilícito como princípio criminal é um sensacionalismo e um erro grave.
(XXI) A decisão é não especificamente causada visto que nós, genericamente, somos causados. Recebemos o nosso Ser mas também a possibilidade de Ser (viii).
(XXII) Os Direitos Fundamentais como armaduras contra o Estado/e ou todo o Poder. Domínio da minoria intolerante sobre a tolerante (ix) ⇒ Direitos Fundamentais instrumentalizados para a intolerância. Maioria não é igual a poder, mas esta é uma ilusão proporcionada pelo contrato social pois a minoria no comando representa a multidão. A minoria armada é mais forte do que uma multidão, basta pensar na chacina de milhares de aztecas por um punhado de espanhóis com armas de fogo. Isso também se aplica à minoria armada de razões e narrativas.
(XXIII) Agora, os Direitos Fundamentais também são motivo de acção dos poderes públicos. Poderes que se vão anulando (Público contra Público, Público contra Privado, Público prestar a privado). Crescimento de um catálogo faz crescer a burocracia e a rigidez. Catálogo extenso de Direitos fundamentais específicos, por muito “aberto” que possa ser, tem sempre uma vertente literal ineliminável. É a rigidez e a morte da composição natural e ética. Deviam os Direitos Fundamentais estar no âmbito de uma maior liberdade, de uma concretização casuística? Objecção: Num ambiente espontâneo, estamos mais sujeitos ao domínio emocional de uns quantos (e também os tribunais o estão), logo precisamos de proteção exterior. Os Direitos Fundamentais protegeriam aqueles que “não têm argumentos”, que não têm meios para se proteger (porque não têm acesso a explicações de ouro).
(XXIV) Pôr o Direito sob o prisma do Cidadão. Para isso é necessário sair do contexto institucional em que nos encontramos e oferecer uma visão, uma utopia? O contexto institucional pode ser adverso à experiência mais vasta que é necessário ter em conta para o Direito do Cidadão. Mas será o Direito feito na excepção e não na regra social? Esta é a perspectiva do advogado. O resto é indiferente e pode por isso ser visto como integrado no ‘sistema oficial’ (que se manifesta também com os fantasmas da representação). Mas é bem real que o sistema oficial pode agir como um bandido estacionário quanto ao resto que lhe é indiferente.
(XXV) A rampa deslizante aplicada às sociedades. Não é fantasma, é a história do declínio. Consequências lógicas previsíveis? É a explosão que depois nos valida a dizer que houve lento declínio? Sempre a tentar racionalizar o passado! (x)
(XXVI) Dizia ele que os Direitos Fundamentais servem para proteção das minorias. O bonus paterfamilias, o homem médio, aquele cumpridor das normas sociais, não precisa deles. Quem está bem com a sua comunidade não precisa de Direitos Fundamentais, diz-se. Exemplo flagrante: a liberdade de expressão protege quem ofende. Democracia pára e tem de parar quando chegamos às minorias... e a própria democracia não é minoria encapotada de maioria?
(XXVII) Continuava ele dizendo que os ‘outros’, os ‘estranhos’ é que precisam de Direitos Fundamentais. E aquele que usa deles é automaticamente ‘outro’, por definição, digno de proteção? Alguém com poder que use todos os Direitos Fundamentais para escapar — perversão do sistema? Ouço as vozes das Grandes Pessoas a sussurrarem-me ao ouvido dizendo que esta punição social por uma percepção de poder é um preconceito do pior. Vejo algo de errado, mas não tenho nada mais do que conflitos de aparências na mente.
(XXVIII) Oportunismo também se manifesta quando argumento recorrendo a valores/Direitos Fundamentais. Maior leque disponível de valores de que me posso armar precisamente quando sou um polvo do sistema. Os polvos do sistema têm tentáculos para usá-los todos. Diz-se que os tentáculos são caros. Ouço vozes outra vez.
(XXIX) Se a ilusão da representação política é grave, mas não se pode eliminar, talvez só se possa descentralizar.
(XXX) Serão as ideias indiferentes às acções? Não, mas dificilmente conseguimos descobrir o que as liga. Um conservador pode dar-se lindamente com um esquerdista ferrenho. Procurarão o comum e não o que os diferencia, ou então tolerarão e até, nas melhores amizades, deleitar-se-ão com as diferenças. O gosto e amizade precedem e fazem as ideias. Ação ⇒ ideias. E a sua ligação não é linear ou previsível.
(XXXI) Quererei eu dizer que é sempre assim? Não, mas que o que precede é mais amplo pois não depende do segundo. (XXXII) Voluntarismo — Segundo o dicionário priberam (xi), é a doutrina que concede à vontade primazia sobre o entendimento. Qual prevalece? Se eu tiver tempo para me sentar numa cadeira e reflectir, talvez o segundo. Se não tiver, também não sei se chamarei a isso vontade.
(XXXIII) Sonho — terra do parecer/ser por excelência. Ambiguidade total. É assim que o diálogo começa. Os símbolos serão sombras que obscurecem a vista ou fantasmas que zombam de nós?
(XXXIV) Uma vez, talvez mais do que uma, escrevi sobre uma força mítica designada por ‘força sociológica’ — quem me dera não o ter feito! Como é bonito arranjar um nome para o inexplicado ou inexplicável.
(XXXV) Identificar a descrição de cada sociedade com o bem dessa sociedade — que erro trágico!
(XXXVI) Identificar ‘sociologia’ de cada sociedade com democracia — que erro trágico!
(XXXVII) Não deduzirás — Segue-se naturalmente disto a legitimidade da intervenção na vida alheia.
(XXXVIII) Estando nós indefesos perante o poder dum grande polvo, devemos nós puni-lo socialmente? Mas se ele nem nos vê, não pode sentir grande vergonha nem ostracismo.
(XXXIX) Não tendo nós sequer a certeza de que é um grande polvo maldoso, podemos fazê-lo? Só reagimos ao que aparece. As prerrogativas, o poder e a visibilidade daquele contrastando com a nossa impotência parecem indicar esse caminho mínimo. Aparências e distância outra vez.
(XL) Causa genérica do meu ser, mas não causa específica do meu acto, com a vontade, ou pelo menos a tentativa de a salvar, a impor esta dicotomia. Será que com recurso a ela posso resolver o problema de Dorian Gray? (xii) Dorian é submetido à influência do cínico Lord Henry Wotton que parece corrompê-lo. Mas o curioso aqui é que o cínico nas palavras se mantém um homem de probidade nos actos ao longo de todo o livro. Dorian parece lutar ao nível das ideias à medida que os seus actos pioram. Será a convivência com Lord Henry uma causa genérica do seu ser mas não causa específica dos seus actos? Quando uma imagem (xiii) me assalta à memória por associação, por exemplo, quando me lembro de um amigo por estar num local por ele regularmente frequentado, a imagem emerge e eu tomo consciência dela. Não tenho grande controlo. Mas se calhar poderia ser dito que eu tive controlo do processo que levou até essa imagem, pois era previsível que a tivesse. Ou será esta mais uma ilusão da narrativa posterior ao facto? Porventura, poderia suceder que a tivesse muito antes de passar pelo local, tendo em conta a intensidade da amizade. Como se a imagem estivesse presente sem ter ainda emergido completamente. Mas adiar o problema não o resolve. Não controlo muito a associação de ideias, de lugares a pessoas, lugares a ideias e ideias a lugares, pessoas a pessoas e por aí adiante, antes tomo dela consciência. Mas eu também posso tentar lembrar-me e efectivamente lembrar-me, como sucede àqueles que, como eu, tiveram de regurgitar a gramática aborrecida de alguma língua para despejar no exame. Naquele momento quero algo, mas não sei imediatamente bem o quê. Se me lembro do processo para lá chegar, talvez se possa dizer que me lembro (xiv). Que me lembro de algo. E lembrar-me do processo não é apenas uma imagem, um instinto inexplicável que tenho? Uma presença adquirida? E se eu perguntar pela sua causa, ao nível das ideias, poderei dela já não me lembrar, mas pensar na sua necessidade lógica, e daí eliminaria a vontade. Tentar lembrar-me não seria mais do que uma ilusão, pois a tentativa, o suposto querer, foi causado por uma ideia e esta emergiu e dela fiquei consciente. Poderá aquela dicotomia salvar um espaço para a vontade? Como se houvesse um espaço vazio no universo ou uma certa autossuficiência? Um isolado, um lugar sagrado? E se o acto preceder a ideia? A vontade deixaria de estar enquadrada no esquema “ideia emerge do inconsciente” ou, o que é o mesmo, “ideia emerge de forma inconsciente”, mas pareceríamos animais sem razão dessa forma. O puro acto também parece uma reação mecânica e caímos nós no instinto, na nossa essência não livre. Pareceria então que a vontade, ou pelo menos a ilusão de vontade, pressupõe um mínimo de tranquilidade, de esclarecimento, de pausa para considerar. Chegámos a um beco sem saída. E já descobrimos dois.
(XLI) A vontade como epifania inexplicável porque não causada? Milagre, iluminação interior e isolada do universo e apenas a ele ligada quanto à causa genérica?
(XLII) Ou como não linearidade por excelência? Precisa de uma linha para se manifestar.
(XLIII) Diz-se que no verão devemos regar as plantas quando não faz sol para a água não evaporar, mas talvez elas agradeçam mais a água quando está sol.
(XLIV) Um botânico, a interpretar a frase nessa função, considerá-la-ia um absurdo sem sentido. Um professor, a interpretar a frase nessa função, poderia considerá-la um absurdo, mas não sem sentido.
(XLV) Se num absurdo sem sentido encontramos indícios de projeção, talvez só possamos interpretá-lo num sentido simbólico, deixando de não ter sentido.
(XLVI) As Leis, uma Hidra. A sociedade, uma incógnita. O que é um agregado?
(XLVII) O comportamento do todo não é explicado pelas partes. Não é um todo real, mas formal.
(XLVIII) Seremos forma?
(XLIX) O Ser que é não é mais do que o Ser que quer Ser. Como? O que é que ele é em si? Não pode ser as suas partes, sempre em fluxo. Uma certa forma independente da matéria?, do acidente?, do particular?, e mesmo do universal?. Não sei.
(L) Não sei do que falo e pressuponho a consciência como milagre.
(LI) Diz-se frequentemente que devemos desconfiar das memórias quando delas estamos mais confiantes. Sem elas, o que são as outras? Não existem.
(LII) Normalmente aquilo que queria muito dizer nunca disse. Aquilo que não queria assim tanto dizer, disse.
(LIII) Posso dizer que ‘que queria muito dizê-lo’ sem cair na ilusão retrospectiva?
(LIV) E ‘não queria muito dizê-lo, mas disse’?
(LV) Precisamos de ilusões para sobreviver. Os nossos olhos estão a funcionar bem quando temos ilusões ópticas.
(LVI) Não desesperes com o estudo de esquemas lógico-formais. Pergunta pelo seu fundamento natural. O que é natural? Um problema para resolveres. Ou não.
(LVII) Não deduzirás da discussão sobre vontade — a psicologia Freudiana está certa.
(LVIII) Quanto de mim tenho de alterar para agradar? E quanto para desagradar? Se desagrado, os outros que me tolerem?
(LIX) A Santíssima Trindade do Estado não é nem próxima, nem amorosa, nem justa.
(LX) “Se me mentiu, não me magoe dizendo depois a verdade”(xv) E dizer a verdade primeiro, porventura escondendo-a na brincadeira, e depois mentir? É simples. Não interessa a ordem, a mentira já destruiu tudo.
(LXI) A maior tragédia dos jovens universitários não é a falta de segurança no emprego, mas a castração da imaginação a que a educação os submeteu e os levou a pensar em noção tão aborrecida. De pequenino se torce o pepino. Saímos a achar que temos direito a ocupar posições nas pirâmides. Haja gente na base.
(LXII) Basta de sacralização de pirâmides! Basta!
(LXIII) O problema da opção gratuita. Quando estou financeiramente dependente de alguém, tenho tendência a pensar em tudo como uma opção gratuita, logo aceito mais facilmente o que me aparece primeiro. Quando as tenho de pagar do meu próprio bolso e arranjar forma de me fazer pagar? Descubro as minhas verdadeiras preferências. Mas para muitos pode parecer demasiado tarde por já estarem em pirâmides. Venderam-nos a ideia de que fomos feitos para isso. De que é um bom investimento. Problema moderno.
(LXIV) Às faculdades devo pouco (suspeito que elas me devam mais), a alguns professores devo bastante, aos meus amigos, incluindo os que já foram, devo muito. Mas aos meus pais devo tudo.
(LXV) Aquilo que critico é o que sou.
(LXVI) Ser Burocrata não tem de ser uma posição, mas uma disposição. Uma disposição com posição.
(LXVII) Eu, burocrata, me confesso — corrompi o meu pensamento, já pensei que seria possível saber tudo confortavelmente numa secretária. Tomar boas decisões, chegar à virtude e à verdade apenas contemplando a luz confortável da minha secretária.
(LXVIII) Eu, pecador, me confesso...
(LXIX) O génio de Santo Agostinho — platónico quanto à forma, humilde perante o desconhecido e seguidor da sua paixão e curiosidade. “Quis enim uidit cygnum nigrum? Et propterea nemo meminit. Cogitare tamen quis non potest?” (xvi) traduzido no livro por “De facto, quem viu um cisne negro? Por isso é que ninguém se recorda. Mas quem é que não pode pensar nele?”
(LXX) Em mim a paixão teve sempre início numa curiosidade inocente alimentada.
(LXXI) Uma interrogação assombrosa. Tal como Platão o foi para Sócrates segundo Karl Popper (xvii) , terá Santo Agostinho sido o judas de Cristo?
(LXXII) Poderá o universalismo de Cristo, o amai-vos uns aos outros como eu vos amei, ter sido traído por aqueles que se achavam os seus melhores servos? Será Santo Agostinho o precursor da ‘Santa’ Inquisição?
(LXXIII) E se eu disser que a instituição em si foi posterior e que não posso responsabilizar os pensamentos por isso, nem por isso se segue daí que a categorização de heresias não seja um sinal de intolerância e não tenha desempenhado um papel importante. E se eu disser que o universalismo enquanto ideologia moderna, de matriz kantiana, é ingénuo, nem por isso se segue daí que a intolerância se justifique. E não poderei dizer que um certo tipo de universalismo mínimo é ingénuo sem estar a trair aquela mensagem.
(LXXIV) Confesso a minha ignorância sobre o assunto. É que eu não conheço os seus escritos particulares nessa área e sinto-me tentado a não projectar demasiado algo que seria futuro para eles neles. O primeiro passo é criticar o que está escrito e não fazer ligações causais precipitadas. E a influência das ideias sobre os eventos é algo muito difícil de discernir. Mesmo quando as lemos. Tal como Platão, que pode ter tido muitos defeitos como pensador, não é certamente responsável por aberrações como o regime nazi ou soviético. E de que importa fazer ligações causais que distam séculos entre si?
(LXXV) Recuperar alguma tradição não implica recuperar instituições. Se elas forem irremediavelmente corruptas ou para isso tendam, mais vale recuperar um mínimo delas. Mas o que é isso de instituições? Regras?
(LXXVI) Mesmo depois das críticas usei a dicotomia de Santo Agostinho — A Cidade de Deus (do Bem) e a Cidade Terrena. Estarei eu a tentar salvar referências individuais apontando baterias a um colectivo difuso? Um fantasma fácil? Bem, o passado é pululado por fantasmas. Nenhum se pode escudar no outro, diz-nos o Direito. O que é isso de instituições? Regras com um certo patamar de distância? Impessoalidade?
(LXXVII) Maniqueu me tornei quanto ao Estado e ao indivíduo?
(LXXVIII) Que não se perca o latim, a matemática enquanto exercício de imaginação e o português. Mas por favor não nos obriguem a estudar demasiada gramática antes de sabermos escrever.
(LXXIX) Quando penso na quantidade de coisas que poderia ter feito e não fiz, gosto de consolar- me pensando que estava particularmente desperto para as que fiz.
(LXXX) Pensar no muito que poderia ter feito e não fiz pode ser de uma arrogância atroz. É certamente inútil a não ser que queiramos a redenção agora.
(LXXXI) Pergunto-me frequentemente se devo perdoar porque é próximo ou se é por isso que é indesculpável. Diametralmente oposto.
(LXXXII) Talvez sair, mas perdoar. Mas na maior parte das vezes sair não é perdoar.
(LXXXIII) A reciprocidade difusa. O que nos é devido — os impostos que se pagam não têm nenhuma contrapartida específica (um serviço qualquer), mas genérica. Um conjunto de bens públicos, de disponibilidades. Se estas se degradam, estou legitimado a fugir deles? Se vejo o Estado enquanto bandido estacionário? E os outros que podem e fogem efectivamente, não poderiam eles usar da mesma justificação? Ou não serão muitos dos que fogem mais próximos do Estado do que parece? Quem nos rouba? A alguns é tolerado, a outros é-lhes dito pelas Leis que “Não há igualdade na ilegalidade. Porque aqueles podem e efectivamente fugiram não significa que agora possas pôr- nos a todos reféns do cumprimento universal da norma. É que nós também somos falhas de entendimento, míopes e temos os braços cansados.” Parece razoável. Excepto que a voz que ouvimos parece não se distinguir da voz daquele que foge.
(LXXXIV) Sei instintivamente o que quero. Se me perguntarem se realmente sei, não sei.
Miguel Guerreiro
i) Sobre o problema da prova silenciosa que é eliminada pela nossa seleção ver Nassim Nicholas Taleb, Iludidos pelo Acaso, pp.183 e ss. ii) As Origens da Ordem Política, 2012, D. Quixote; e especificamente Ordem Política e Decadência Política, 2014, pp.636 e ss., D. Quixote. iii) Resposta a um comentário meu nas redes sociais. iv) Letter to a young minister: A few things I wish I knew when I came to office, Nuno Crato v) Expresso | Convenção do MEL. Dirigente do IL (e oradora) recusa participar por considerar que presença de André Ventura “normaliza” o extremismo vi) Para um exemplo de debate sobre os danos ’colaterais’ e os assassinos de secretária que, por definição, estão distantes das consequências das suas acções, veja-se The Limits of Discourse | Sam Harris (Não se preste demasiada atenção ao facto de supostamente demonstrar os ‘limites do discurso’). vii) The Future Has Always Been Crazier Than We Thought | Nassim Nicholas Taleb - YouTube viii) Parece-me que este pensamento ressoa pela Suma Teológica, mas não consigo identificá-lo ainda com precisão. Summa theologiae, Suma Teológica, Tomás de Aquino, Edições Loyola, 2016 (Edição Bilingue). Porventura nas cinco vias. Volume I, Q.2 A.2, A.3 e Q.3, pp.164-185. ix) Para mais dados sobre a imposição de preferências por parte de minorias caprichosas a uma maioria complacente, veja-se Arriscar a Pele, Temas e Debates — Círculo de Leitores, 2018, Nassim Nicholas Taleb, pp.91 e ss. x) Eutanásia: a inevitabilidade da rampa deslizante – Observador Os argumentos aqui são sólidos.
xi) voluntarismo - Dicionário Online Priberam de Português
xii) Retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde.
xiii) Imagem aqui no texto vai ser usada no sentido amplo de representação mental, seja ela verbal, esquemática, a três dimensões, etc.
xiv) Platão no Ménon parece sugerir que lembrança do processo é lembrança do resultado. Mas não vou entrar nos seus porquês e outras razões que parecem estar relacionados com a crença na alma imortal e conhecimento inato. Ménon, Levoir, 2017, 82 b)-86 c), pp.51-61.
xv) A Cama de Procusto, D. Quixote, 2010, p.68
xvi) De Trinitate, Trindade, Santo Agostinho, Livro XI.10.17, Paulinas Editora, 2007 (edição bilingue), p.764 e 765.. Coloco a versão latina para deleite dos leitores com a sua estética e não porque saiba muito de latim (não sei, embora queira).
xvii) A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos.
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