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Desobediência e Constituição: a desadequação teorética


Há dois traços confluentes da abordagem que farei ao problema da desobediência do Homem perante o Estado.


Em primeiro lugar, a desobediência como fuga ao monolitismo legalista, seja dissidência, costume, movimento de direitos civis (EUA), e liberdade de consciência.


Em segundo lugar, a desobediência como expressão do pluralismo democrático, da legalidade alternativa e da liberdade de expressão.


Começo por dizer que a obediência, enquadrada em termos modernos, é a expressão coerente da administração pública, da sociedade de massas, da época industrial, da massificação das universidades, da primazia da técnica sobre a ética, enfim. Neste sentido, a obediência representou a transferência para a sociedade industrial das relações de domí6nio pessoal, estas últimas de natureza muito diversificada e compósita. É por isso claro que a obediência deixou de ter tempo no tempo actual: a pós-modernidade.


O caminho progressivo do direito, desde o feudalismo, tem sido a passagem da dominação pessoal à dominação normativa. A fundamentação histórica da desobediência enquanto direito propriamente individual encontra-se na tradição do direito natural cristão (Zagrebelsky). O seu caminho encontra o caminho da justiça das leis. (Veja-se, por exemplo, a responsabilidade criminal dos funcionários nacional-socialistas).


Com a viragem pós-totalitária para as condições democráticas, o regresso do direito natural e a defesa do Estado Social resume o pluralismo. É por isto, aliás, que alguma doutrina já tratou desta questão como limite expresso à vontade das maiorias parlamentares. De facto, a salvaguarda dos direitos humanos e a dignidade humana enquadravam a tutela constitucional do bem-estar e bordejavam os limites de juridicidade.


Nos anos 70, a vaga de novas constituições que tocou também Portugal efectuou a passagem literalista de uma concepção real subordinante do poder administrativo, da moral e da justiça, a expressão verdadeira e normal do poder político em termos técnico-jurídicos, a uma suposta fase de subordinação do poder à Constituição. Isto aconteceu há menos de 50 anos! É hoje claro que não houve tempo suficiente para que se dessem dois ou três passos decisivos para vincular a concepção republicana, a democracia e o pluralismo.


A saber:


1) A revisão das fontes do direito;

2) O rompimento com o carácter elitista e decisionista (Schmitt) da tradição “portuguesa”;

3) A recepção académica das teses mais recentes sobre responsabilidade política, legitimação e validade do direito.


Assim, temos:


a) A predominância de um direito natural de raiz doutrinal (Hespanha)

b) O normativismo exacerbado de uma concepção instrumental-dirigida da Constituição (cfr. a arguição de Gomes Canotilho do trabalho de doutoramento de F. Lucas Pires)

c) A adopção conveniente das teses contratualistas e originalistas pelo poder político, a incúria quanto à efectividade do direito, ou o conservadorismo jurídico quanto ao “mero reconhecimento” como requisito de validade social das normas.


Em suma, a ultrapassagem ou moderação do positivismo raramente se fez de acordo com pressupostos metódicos e empíricos actuais, mas resultou as mais das vezes de uma retórica neo-idealista, com destaque para a matriz católica.



II. Serve isto para que se possa capazmente seguir adiante. A desobediência civil é, em sociedades abertas, uma prerrogativa individual de auto-isolamento face à comunidade política. Decerto, enquanto o regresso existencialista ao Estado de Natureza se foi bloqueando por construções totalizantes da política e do (direito do) Estado, a desobrigação moral perante as leis imorais foi a fuga idealista ao edifício jurídico.


Se me permitem a imagem, perante um arranha-céus de obrigações e deveres “políticos”, de massificação de consumos e hábitos, de servilismo e atomização do Ser, gerou-se uma tal “sociedade autofágica” (Jappe). Por isto, a desobediência foi uma excentricidade literária, conforme o segundo Tolstoi vincou. É por isto compreensível que alguma doutrina, remontando a natureza social da desobediência ao primado da segurança jurídica, caracterize a desobediência como uma excepção à norma. Era ela a tal janela muito alta do edifício jurídico-burocrático do séc. XX; para alguns, muito poucos, valia a pena correr o risco de desalinho porque se tratava, a seu ver, de saltar de um prédio em chamas.


Não é por acaso que me refiro à burocracia, pois é precisamente a possibilidade de desobediência em cadeias estritas de comando – como a empresa, ou o exército – que reconstitui todos os dias o constitucionalismo democrático. E refaz-se a partir da ideação pluralista. Em tese, numa ordenação social de tipo democrático, onde as minorias são defendidas, a desobediência é uma questão desnecessária. A liberdade para a diferença, na acção, no pensamento ou na expressão preenche de cores várias o cinzento da autocracia.


Assim, o “regresso à política” pós-totalitário significa que todos os pontos de vista devem ser incluídos na Constituição, no espaço público, enquanto sejam legítimos. O pragmatismo no problema da verdade atribui a cada pessoa permite objectivar uma atitude divergente, de desobediência de cada sujeito em condições (económicas, de saúde, etc.) de ser levado a sério pela arena deliberativa, e, eventualmente legitimar o conteúdo dessa verdade pessoal. Em suma, o constitucionalismo progressista compreende e releva a individuação dos pontos de vista normativos como correspondente à atomização pós-moderna. Tal gera, segundo a crítica corrente, relativismo moral. Em todo o caso, talvez seja melhor do que o paternalismo organicista do pretenso neutro moral.


Ao mesmo tempo, é bom de ver, esta é a melhor forma que temos para superar (e não apenas renovar e substituir) a validade perpétua da norma das normas. Reinventar a validade normativa para um juízo pessoal que coordena o sujeito moral e o objecto relevante. Num instante, a desobediência à Constituição pode ser uma forma de preservação dos princípios morais democráticos da Constituição.


Como é isto no Estado Pós- Social? Como é isto para lá do “direito oficial”? É claro que podemos virar as agulhas para um significado amplo, segundo o qual as desobediências são aceites a benefício do reconhecimento social do direito. Seria isto algo como a “vontade do povo” actualizada. Tal como na questão das obediências a grupos secretos ou discretos, isto parece tratar-se simplesmente de um anacronismo histórico. Se é certo que a desobediência colectiva pode levar justamente à insurreição popular perante o desmando do tirano, outro ponto de vista diria que isso é fazer entrar pela janela o que se admite já de porta aberta. Para além disso, sob o prisma ideológico, parece ser uma “terra de ninguém”. A transformação constitucional não deve ser resolvida por ímpetos de excepção, mas será integrada na articulação social do sistema jurídico de tipo aberto (Teubner).


Pode resultar agora mais claro o que disse. Hoje a desobediência não é um problema de Teoria do Estado ou de fuga aos curto-circuitos do capitalismo. O interconstitucionalismo (Canotilho) apresenta uma mudança de paradigma. O pluralismo jurídico retirou vantagem das estruturas sociais infra e supra estaduais existentes (mais ou menos perenes no curso da história) e condenou o lirismo ficcionado do monopólio da violência. O publicismo político-jurídico assumiu-se por fim derrotado, flexível, mínimo, mercantil, e global.


Hoje os princípios da moralidade política adequados à historicidade valorativa devem ser processo e resultado de um “consenso deliberativo” segundo premissas de inclusão e reflexividade crítica. Como um vestígio histórico, a distinção entre desobediência moral e direito de resistência salienta a irrelevância já aludida.


(O “direito de resistência” visa combater globalmente um sistema injusto ou corrupto, é uma manifestação política ou politizada num sentido forte, ao passo que a desobediê6ncia aproxima-se do “direito à indignação”. A propósito: parece abusivo estabelecer, como já tem sido defendido, um encargo de proporcionalidade que não seja o controlo pelos tribunais, sob pena de o desobediente pacífico ficar - mesmo na desobediência – obediente do poder.)


Por isto, fica a pergunta: dado o anoitecer do direito e a reemergência da política e da violência, seja como tolerância, como razoabilidade, como boa governança, onde pode a desobediência ser arrumada hoje? Avanço uma tentativa de resposta já ensaiada: possivelmente já não como uma excepção externa à legalidade, assente meramente nos princípios constitucionais do poder. O único encaixe aceitável para a desobediência é interno ao sistema jurídico, como fonte de direito e de direitos, na sequência dos postulados de reforço da democracia: participação e legitimação. Este prisma é o do “regresso” da força do direito, e contradita o direito da força.


Justifica-se uma ressalva, no entanto. Em momentos e pretextos como os que passamos - estado de excepção permanente, reemergência dos regimes autocráticos, é necessário reconhecer que a desobediência joga o seu papel propriamente moderno, que descrevi acima como “salto do edifício em chamas”. Aliás, aproxima-se da dissidência política, do exílio, resultantes da proibição geral ou parcial das liberdades e da perseguição dos opositores. Aqui, em regresso ao passado, o direito é instrumento de repressão: o tirano jamais admitirá limites à sua força pessoal e normativa, mesmo se existe Constituição “simbólica”.


Pode sumariar-se o que venho escrevendo a partir de uma contra pergunta: pois não será verdade que foi, é a repressão das liberdades naturais do Homem que o faz desobedecer? Dito o que ficou quanto ao despovoamento e desterritorialização da desobediência como “terra de ninguém”, passo por último a fornecer características para uma noção actual.


Em primeiro lugar, pode observar-se que a indignação perante a ordem normativa de género constitucional não encontra hoje respaldo numa utopia que lhe sirva de amparo (à parte dos tais regressos autocráticos). A fragmentação actual da vida e do pensamento (Bauman) nas formas actuais da alienação, como o egotismo ou o desligamento político, justifica a fragilidade dogmática. Às vezes, a luta pela sobrevivência bloqueia o acesso económico ao estatuto jurídico. Se o direito não é efectivo, não poderá ser defectivo.


Para mais, o abuso técnico das “soluções” de fuga e adequação ao direito mais conveniente (veja-se a expansão dos tribunais arbitrais, o “planeamento fiscal agressivo”, etc.) pela tecnologia, parece tornar difícil identificar sequer o ponto normativo desobedecido. De resto, é curioso notar que a literatura jurídica dos últimos anos se debruça sobre o “crime de desobediência”.


III. Em segundo lugar, a desobediência é uma atitude rebelde valorada consoante o regime político (o que já evidenciei) e a “força normativa” da constituição escrita. No caso português, é talvez preferível afirmar que a desobediência à letra fundamental é uma banalidade em certas matérias. Associada à variabilidade consoante o tipo de regime político, é também certo afirmar que a desobediência será lida de forma diferente consoante a matéria em causa, a condição económica do desobediente, e de novo, o contexto laboral ou militar da desobediência.


IV. Aproximo-me de uma nota conclusiva. A preterição da hierarquia das normas e do Estado pela globalização parece implicar que a adequação fundamental (teorética) da desobediência não existe mais. Será avisado notar que não se tratara nunca, pela sua natureza civil, de uma instituição forte, mas de uma prática contrapoder, da emancipação do indivíduo moral face ao assentimento das massas. É possível que tenha consagrado heróis, como Salgueiro Maia, no famoso episódio da Ribeira das Naus. Conforme já vem sendo salientado, é uma das manifestações normais da democracia. Já tem sido entendida como consequência da “aplicabilidade directa dos direitos fundamentais”. Isto parece longe da realidade. Por ironia, pode a desobediência originar novos seguidismos.


Claramente vemos o conflito de duas perspectivas parciais: de um lado, a heteronomia- conservação da ordem; de outro, a autonomia - a defesa dos direitos. Segundo creio, o destaque dado à desobediência “colectiva” explica que seja tratada como um meio suspeito de manifestar desaforo político: trata-se de uma posição que privilegia a co6nservação da estabilidade em detrimento da legitimidade emergente. Esta posição do Prof. Paulo Otero parece-me ambivalente e merece a minha discordância.


Na mesma medida, a configuração da desobediência como “graça” do poder, ou com espaço de libertação do Homem predeterminado por lei, pelo poder ou pelo direito positivo, é logicamente contrária face à dignidade individual das razões e emoções de cada ser humano. Pois somos todos e todas pessoas únicas, estruturantes, participantes.


Não é já o Estado do poder com a sua miríade de adjectivos, por último de “Direitos Humanos”, mas o Direito que “está ao serviço da pessoa humana, fazendo de cada ser a razão justificativa” (Paulo Otero). Pelo dito, posso entender que os direitos humanos são prévios ao Estado - ou hoje, seus posteriores. Dirijo-me para um conceito crítico. Se, depois de Habermas, as formas idóneas de comunicação pública e comunicação privada conformam as condições de legitimação, então a desobediência é uma voz, um grito que quer ser escutado na arena deliberativa pós-moderna.


Pode, enfim, afirmar-se que só no contexto histórico moderno foi credível a obsessão com a obediência ao poder, ao mesmo tempo que a desobediência seria um convite oficial à marginalidade. Devemos hoje superar esta concepção, em prol da inclusão das desobediências, em todo o caso: alguma perspectiva mostra-nos que é o seu oposto que devemos temer. Devemos entender, sem necessidade de maior precisão, que toda a desobediência pode ser constitutiva e que isso resulta da injustiça remediada.



João Freitas Mendes

Coruche, 28 de Março de 2021

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