A democracia é o melhor sistema que conhecemos, mas já desde a Antiguidade tem sido alvo de algumas questões, nas suas diversas dimensões. Além de problemas intemporais como a corrupção (não exclusiva da democracia) ou a representatividade limitada, um grande conjunto de críticas direciona-se contra o eleitorado, aferindo principalmente a ignorância no voto, a falta de educação política e a manipulação pública.
Temos verificado globalmente que, por vezes, os produtos da democracia não são propriamente os esperados - nomeadamente quando vemos a ascensão de partidos ou personalidades mais radicais que tendem a querer alterar a matriz democrática ou a ignorar direitos humanos básicos – direitos esses associados à construção axiológica global e sólida dos Estados, sendo isto um fenómeno já estudado: o retrocesso democrático (democratic backsliding).
Parece evidente que a democracia é o que todos queremos, de maneira a ser possível ter um papel na direção da sociedade – mas visto que os outcomes nem sempre são favoráveis, urge um debruçar sobre as falhas da democracia contemporânea e, quiçá, uma discussão sobre possíveis planos B. Uma primeira reflexão é a de se podemos colocar as culpas das falhas da democracia no eleitorado, e se este devia ser obrigado a uma maior literacia social e política, sob forma de disciplina. Apesar de uma disciplina quase certamente ter efeitos no panorama eleitoral, é difícil de auferir se um grau de literacia dependente de uma disciplina seria o suficiente. Tornar sociologia e política em mais uma disciplina traria, antes de tudo, várias críticas de doutrinação por ser uma disciplina extremamente dependente de valoração axiológica. Depois, outras questões já presentes na educação atual – a meritocracia (acessibilidade às fontes de literacia política e social) ou até se é possível ensinar política e outras matérias de modo neutro. Mas se hoje consideramos que num seio de cooperação internacional, como por exemplo o da União Europeia, há determinados valores que vemos como certos e pelos quais os Estados e os seus indivíduos devem lutar, isso não deveria ser ensinado sem ter em conta qualquer atrito? Seria tal uma amostra de doutrinação e de autoritarismo nos valores? A afronta a direitos que ainda acontece em alguns países da União Europeia como a Polónia ou a Hungria podem fazer aumentar a descrença nesta suposta proteção da União – colocando inclusive a confiança nas suas instituições em causa.
Olhando para o processo eleitoral, verificamos que a posição política que o cidadão toma é, ao fim e ao cabo, a projeção da sua construção axiológica individual. Surge o problema de perceber se essa mesma bússola axiológica não poderá estar corrompida – por informação incorreta, partidarismo cego, mas acima de tudo, e por vezes inconscientemente, pelo próprio enviesamento do eleitor, a partir das experiências que viveu na sua vida, no contexto em que cresceu. Isto leva a uma questão eleitoral complicada: no voto, todos os eleitores têm o mesmo peso – mas todas as opiniões valem o mesmo? A opinião disfarçada de discurso de ódio e afogada em enviesamentos vale tanto como a direção política racional e despida de experiências pessoais, substituindo-as por uma análise lógica dos problemas com que se confronta?
Entramos na epistocracia, um sistema no qual o eleitorado é constituído somente por pessoas que comprovem ter um conhecimento mínimo de dimensões vistas como essenciais para a matriz organizativa da sociedade – política, direito, sociologia, etc. No fim de contas, não é mais do que só permitir que vote quem tem o grau de literacia esperado do eleitor consciente na democracia contemporânea. Se por si a teoria tem incertezas como o método de escolha do eleitorado ou se os resultados seriam sequer melhores que os da democracia, a decisão prende-se primeiro em questões anteriores, nomeadamente no âmbito do constitucionalismo – vendo o sufrágio universal como um direito fundamental alicerçado nas mais antigas correntes liberais, seria muito difícil derrubá-lo. Depois, as questões de responsabilização se a orientação política falhasse ou qual seria a legitimidade do produto eleitoral.
No entanto, algo é evidente: a política global encaminha-se para uma floresta densa e sem mapa, que poderá trazer nas suas sombras vários resultados perigosos, entre eles, o retrocesso de direitos humanos e fundamentais que se têm vindo a solidificar e que esta discussão tanto tem em conta. Aqui, encontramos uma balança de valores: devemos aguentar os resultados da democracia, sejam eles quais forem, e respeitar a vontade do eleitorado – ainda que incorreta –, ou devemos assegurar que perante certo estado de situação, a democracia tem de ser corrigida por métodos ainda pouco claros na doutrina da ciência política e do direito?
Ainda que o caminho seja tenebroso e declivado, é empírico que o melhor que a democracia tem a oferecer ainda não está atingido. Uma democracia funcional precisa de mais justiça social e de redistribuição – para os cidadãos sentirem que fazem parte de algo que vale a pena o esforço, e de maneira a sentirem que a oscilação do barco da democracia merece a participação de todos na direção do leme.
Henrique Simões
"Narrenschiff", de Thomas Bühler. O navio dos tolos ("ship of fools") é originalmente uma alegoria de Sócrates no Livro VI da República de Platão.
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