Aparição é uma obra ímpar na literatura portuguesa, manifestação maior do pensamento existencialista do escritor Vergílio Ferreira. É uma narrativa interior, proveniente do âmago do ser humano, enquanto ser pensante, inconformado, perplexo face ao mistério que é a vida. É um tratado das profundezas da alma humana.
E todo este pendor existencialista da obra materializa-se na densificação interior das personagens, dotadas de uma profundidade psicológica singular na nossa literatura. É neste contexto que nos aparece Sofia, a criação, a meu ver, mais complexa e fascinante da obra. Pela sua loucura sã, proveniente da consciencialização do absurdo que é a vida, efémera e sem respostas, e pela sua violência interior, ciente da vivência num corpo frágil e finito, Sofia é uma alma vertiginosa, que perturba a serenidade do espírito.
É sobre esta figura que a personagem principal, Alberto Soares, fala de forma mais emocionada nas suas reflexões, à distância de vinte anos, relativamente aos tempos em que estivera a dar aulas no liceu de Évora.
Sofia marca a diegese de Aparição pela sua personalidade perfeitamente fora de comum. Toda a sua atuação é marcada pela consciência de uma autonomia que roça o desprezo pelos outros, e pelo seu caráter excessivo, onde se sobressaem traços de loucura e de perturbação psicológica: “Só na tarde do dia seguinte ela reapareceu, absolutamente serena, indiferente à aflição familiar. Tinha estado todo esse tempo empoleirada na chaminé de um forno abandonado, no pátio. De outra vez, e sem questão nenhuma, atou fortemente um nastro num braço, prendendo a circulação. Já tinha a mão roxa quando o pai descobriu. Sofia sentia-se alegre por saber que estivera em risco de perder o braço todo”.
Através da sua permanente inquietação existencial, Sofia toma consciência da sua solidão no mundo enquanto ser condenado à morte, o que a leva à loucura e a várias tentativas de suicídio: “Vivia sempre à escuta de uma invisível ameaça ao seu mundo pessoal – mundo de alegrias ou amarguras que só ela sabia. Acontecia assim às vezes – Moura contava – que durante uma conversa (como quando o pai falava da morte de algum doente) ela sorria enlevada com o ar distante, separado, de uma louca. Como em situações diversas (uma vez, por exemplo, numa festa de anos da irmã) ela fugia de todos, grave de amargura, mas raramente chorando. A certa altura houve quem preconizasse o recurso de um colégio. Meteram-na no colégio. Mas não houve outro remédio senão tirar-te de lá, porque duas vezes tentou suicidar-se.”
Sofia rege a sua conduta por critérios éticos que não coincidem com os da moral estabelecida pela sociedade em que se encontra, pelo que não se conforma com o curso de vida estipulado e moldado por esta: “- Porque há-de a vida ter razão sobre nós? Porque havemos de ser sempre nós a submeter-nos? Um curso e um marido e filhos...
Tive uma palavra professoral, como era ali da minha obrigação:
- Se todos fizéssemos só o que nos apetece...
- Sim. Mas porque é que numa vida certa o verbo studeo há-de pedir dativo?
- Que queria você fazer, Sofia?
- Sei lá, sei lá...
E ficava muito séria, olhando ao lado qualquer presença obscura – e ambos nos esquecíamos dos livros e cadernos.”
Deste ponto de vista, Sofia torna-se uma personagem única, na medida em que não representa nenhum grupo ou classe social, algo tantas vezes metaforizado na literatura, mas um ser único e irrepetível. É uma personagem com vida própria, caracterizada pelo seu desassossego interior, que se manifesta até mesmo no seu olhar: “de uma violência ingénua, secreto e húmido e fulgurante como um primeiro pecado. “.
Desde o início da narrativa, deparamo-nos com uma personagem complexa e contraditória. A violência, o excesso, a atração pela morte e abismo, as suas atitudes extremas confinam-na à loucura. Mas trata-se de uma loucura sã, decorrente da brutalidade da consciencialização da complexidade da vida, da sua finitude, e por isso Sofia vive despreocupadamente, fiel a si mesma, aos seus sentimentos e pensamentos íntimos, não se preocupando com aquilo que os outros esperam de si: “– Estudou a lição?
- Não peguei em livro – disse ela, sorrindo por entre o fumo do cigarro. – Não está contente?
- Contente? Porquê?
- Ouça, doutor: se alguma coisa me preocupou sempre foi ser consequente, unir o que faço ao que sinto. Porque não faz o mesmo?
- Oh, não faz... Se o fizesse, já me tinha beijado...”
Todavia, e para retomarmos o ponto inicial sobre a forma emocionada com que o narrador personagem recorda Sofia, é importante analisarmos a relação que Alberto e Sofia estabelecem.
Apesar das diferenças comportamentais entre estas personagens, visto que a atitude passiva e introspetiva de Alberto contrasta com as atitudes impulsivas e extremistas de Sofia, é de notar que entre eles se verifica uma similitude em relação à permanente introspeção sobre o mistério da vida enquanto “aparição”, sendo que ambos afirmavam ter descoberto: “a vertigem da sua vida, da sua pessoa, da gratuidade desse absurdo milagre, da interrogação para o amanhã”.
A atração física que nasce entre os dois acaba por ser, não no sentido de paixão carnal, mas de compreensão em relação ao que lhes desassossega a alma. De facto, apesar de demonstrar comportamentos diferentes dos de Sofia, Alberto parece compreendê-la melhor do que qualquer outra pessoa. Para ilustrar a situação, devemos atender ao diálogo travado entre Sofia e Alberto a caminho dos festejos de Carnaval. Enquanto Alberto contemplava a beleza dos campos alentejanos em plena primavera, Sofia afirmava preferir a paisagem ardente e destruída dos campos em agosto, que alude à ideia de morte. Desta forma, Alberto consciencializa-se da fatalidade do destino trágico de Sofia: “ – Lindo dia, lindo campo – digo eu em voz alta. – Deve ser a única oportunidade do Alentejo, esta, da Primavera.
- Gosto mais em Agosto – opõe Sofia, olhando em frente.
Terra calcinada, deserto estéril – pensei -, a cor dos restos do incêndio, o teu destino de desastre, Sofia. Sim, eu entendo.”
Alberto compreendia que era nesta “terra calcinada” que Sofia se encontrava em comunhão com a natureza e com a sua própria existência. Alberto compreendia a sua alma. Poucos são aqueles que nos compreendem na nossa essência, no nosso funcionamento interior e, mais que isso, que não nos julgam, que nos aceitam na expressão máxima da nossa individualidade.
As preferências de Sofia pressupõem, assim, um destino trágico e para o qual ela corre gradualmente. O destino de Sofia aparece, com efeito, sob a forma de morte.
De facto, à semelhança da violenta e excessiva personalidade de Sofia, a sua morte também apresenta as mesmas características, visto que Sofia acaba apunhalada por Carolino, uma personalidade igualmente louca como ela, com quem estabelecera uma ligação amorosa, somente para fazer ciúmes a Alberto, confirmação do seu caráter provocador e contraditório.
Em suma, considero que Sofia poderá representar a angústia humana em relação ao seu sentimento de impotência face a questões que ultrapassam a metafísica, pois o Homem é visto como um ser condenado à morte, numa ótica existencialista.
Mas, independentemente de tudo isso, o problema de Sofia reside, no meu entendimento, no facto de esta viver completamente submersa nesse mesmo sentimento de impotência, pelo que é incapaz de se abstrair dessa problemática e de contemplar as pequenas “aparições” com que nos deparamos todos os dias. Exemplos desta ideia podem ser, por exemplo, o nascimento de um bebé ou um simples desabrochar de uma flor. Acontecimentos simples, mas dotados de uma extrema beleza e sensibilidade e, de um certo modo, de perfeição. Sofia é a manifestação da dificuldade que é encontrar um equilíbrio na nossa vivência, aceitando as coisas inacessíveis ao conhecimento humano.
Beatriz Ferreira Santos
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