A Peste de Albert Camus é um livro para todo o tipo de leitores e de contextos. Desde aulas de Literatura e Ética a aulas de Filosofia, até Ciclos sobre a Literatura e o Existencialismo ou a Literatura e o Holocausto, a Clubes do Livro ou a Grupos de Discussão, muito oferece e exige ao pensamento. O livro A Peste tem aquela caraterística particular de deixar mais perguntas do que respostas - como se do mesmo se estendessem vários (inumeráveis e infinitos) fios de leitura que cada leitor, de acordo com a época em que vive, a sua idade, maturidade literária, gosto e experiência de vida, encontra e puxa ao seu ritmo e ao seu modo.
Ler A Peste antes de estar instalada a pandemia da COVID-19 é imaginar o que seria viver numa cidade em quarentena, rodeado pela doença e pela morte. Lê-la na época da pandemia da COVID-19 - a nossa - é confrontar o mundo ficcional apresentado n’A Peste com o mundo real de 2020 e 2021. O fazer literário de Camus n’A Peste relaciona-se intimamente com os problemas extraliterários do mundo contemporâneo e exige-nos debruçar-nos, com toda a paciência e argúcia, sobre os desafios que a nossa sociedade enfrenta - eis que A Peste se revela o espelho simultaneamente lúcido e cruel do qual não podemos desviar o olhar até sabermos desenhar, de cor e integralmente, os contornos mais marcados e sombrios dos nossos rostos. Nesse espelho vemos desenharem-se, a vermelho cor de sangue, questões que se nos impõem e nos desconfortam.
Até que ponto conseguimos permanecer indiferentes à dor e ao sofrimento alheios? O que ganhamos e o que perdemos com a apatia que demonstramos perante os outros, a política, a economia, o ambiente...?
Qual o valor dos pensamentos, das palavras e dos atos? Pensar por pensar é suficiente, ou é preciso sempre pensar para agir?
Qual a relação entre a liberdade e a justiça? Podemos ser completamente livres se não formos inteiramente justos?
Como podemos repensar a nossa sociedade com vista a colmatar as injustiças (económicas, sociais, morais, culturais, políticas...) que já observávamos todos os dias e que a pandemia veio apenas expor à superfície, como uma lixeira a céu aberto? Essa lixeira é hórrida, putrefata e incomoda, mas vamos apenas mudar de casa, usar perfume ou tapar a janela com cortinas, ou, efetivamente, fazer algo quanto à mesma?
O que estamos a oferecer ao futuro? O que queremos oferecer ao futuro? E o que devemos oferecer ao futuro?
O que aprendemos a valorizar e a desvalorizar com a pandemia? O que precisamos de redefinir para termos qualidade de vida dentro dos limites do planeta e, ao mesmo tempo, diminuir as injustiças sociais dentro da nossa comunidade e a nível global?
Para Padre António Vieira, “O livro é um mudo que fala, um surdo que responde, um cego que guia, um morto que vive”. O livro A Peste de Albert Camus vem demonstrar com clareza isso mesmo – ler este livro é passar da escuridão à luz; é permitir-se o presente, o centramento e a não alienação; é um abrir-se a considerar de modo simultaneamente próximo e distanciado a(s) realidade(s) do mundo.
Como leitora de A Peste em 2019 (época pré COVID-19), 2020 (início da COVID-19) e 2021 (continuidade da COVID-19 sem fim aparente à vista), e como alguém que teve oportunidade de ler e reler este livro sob os mais variados ângulos, concluo que esta obra me confirmou a importância de não ser indiferente à dor e ao sofrimento de outrem. Em especial, ensinou-me a não ser indiferente à indiferença alheia, impelindo-me a ser diferente num mundo de indiferentes - escolher ser o olho que vê, a orelha que ouve e a boca que fala. Ensinou-me, ainda, a necessidade de agir de acordo com as minhas próprias crenças e valores, mesmo que estes não correspondam necessariamente aos do coletivo; a necessidade de ser ativa e de lutar por aquilo em que acredito. Finalmente, ensinou-me o quão vital é não baixar os braços perante as ondas gigantes da vida, lutar com todas as forças e até ao fim contra o afogamento, bem como transformar o absurdo, a trágica condição humana, a dor, e a revolta, em ação.
Ana Sofia Souto
Maio de 2021
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