A Impunidade do Crime de Corrupção — Crítica do Acórdão do Tribunal Constitucional 90/2019 e da Decisão Instrutória da Operação Marquês relativamente à Prescrição dos Crimes de Corrupção
O crime de corrupção tem como seus elementos a «solicitação» ou «aceitação» de vantagem ou da sua promessa no caso da passiva e «a sua promessa» ou «entrega» no caso da activa. Certa doutrina, o Tribunal Constitucional e o juiz de instrução criminal, Ivo Rosa, tornaram a discussão à volta dos artigos 373o e 374o do Código Penal num problema de saber qual é a condição necessária do crime quando aquelas duas, isoladamente consideradas, podem bem ser suficientes para o dano e ambas em conjunto são necessárias por serem elementos objectivos e subjectivos do crime.
Na lei parece estar vertido o entendimento de que com a simples promessa e a aceitação desta já se violou um bem jurídico por desvio das funções. Mas dada a disjunção («ou») nela presente, não parece tal entendimento invalidar o dano estendido no tempo. Ora vejamos.
O entendimento do Juiz de Instrução Criminal e da doutrina quanto à prescrição nos crimes de corrupção foi o seguinte: A promessa e a sua aceitação constituem logo crime, logo começa a contar o prazo a partir daqui. Entender o contrário, que o prazo poderia começar a contar-se após a execução final, seria violar o princípio da legalidade. Como? Não está lá na lei «entrega» também? Não está lá precisamente para atender aos diferentes momentos em que o dano se pode concretizar e à possibilidade da sua dispersão temporal? Ao contrário do que se afirma na decisão instrutória, não só este entendimento aumenta a impunidade, como dificulta a prova evidentemente pois eu posso planear só ter a vantagem, que é o elemento objectivo do crime, daqui a 5 anos quando o crime já estiver prescrito e restam apenas os elementos subjectivos (promessa e aceitação) que são facilmente mascaráveis e de difícil prova sem aquele... ainda para mais com a hipótese de adiar a realização do elemento objectivo (e de ter um testa de ferro que a recebe).
E porque é que as violações dos deveres pagas a “prestações” devem ser referidas a um momento original para efeitos de contagem do prazo? Com entregas de vantagem não se está a renovar de forma cada vez mais intensa o ilícito? Além do mais, a decisão instrutória invoca o novo prazo de 15 anos aplicável aos crimes de corrupção como razão para se considerar a contagem do prazo a partir da promessa e aceitação apesar de com esse entendimento o prazo aplicável ser o de 5 anos...
Portanto, evitar a impunidade e a dificuldade probatória em geral levam-nos a defender a impunidade no caso concreto? É isto?
É também um argumento cínico dizer que o prazo não contar a partir da promessa e da sua aceitação é susceptível de criar uma situação de punibilidade eterna quando estes são os elementos subjectivos mais difíceis de provar sem aquele elemento objectivo. Mesmo com o novo prazo de 15 anos aplicável a estes crimes. E a questão é que o prazo pode começar logo a correr no momento da promessa e da aceitação por violação do bem jurídico, mas ser renovado com a concretização temporal do dano. A violação não tem de se resumir certamente àquele momento inicial.
E talvez o verdadeiro problema deste crime seja o facto de a promessa e a sua aceitação serem consideradas a condição necessária e suficiente para a verificação do dano e respectiva consumação material quando podiam ser muito bem mera tentativa... O próprio problema está na dita "consumação formal" implicar automaticamente o dano e não no pensamento que está a atender ao dano real, à consumação material. Mas os problemas da lei não parecem invalidar o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, revogado pelo do Tribunal Constitucional, pois que não se visualiza o porquê de não se renovar o prazo quando se renova o ilícito, a sua consciência e o dano.
O cidadão comum vê nisto uma pura armadilha. A combinação de entendimentos quanto à natureza do crime e relativamente ao início do prazo de prescrição, ainda que conduzindo a um resultado à primeira vista aceitável porque fundamentado de acordo com cânones dogmáticos, não deixa de lhe parecer um truque que leva à impunidade no caso concreto.
Temos de nos decidir. Nem sempre a interpretação do Direito Criminal deve ser aquela que favorece o arguido por defeito, porque primeiro é preciso interpretar adequadamente o que lá está e tê-lo a ele e ao bem jurídico em conta. Os grandes princípios que protegem o arguido no Direito Substantivo são principalmente relativos à aplicação da lei no tempo e à analogia. Afirmar que a renovação do prazo é uma criação judicial de uma nova categoria de crimes é não atender ao facto de existirem dois momentos distintos separados por «ou» certamente para atender ao facto de a consumação material do crime de corrupção poder estender-se no tempo. E parece-me que neste caso é a doutrina que está a inventar que existe uma única condição necessária e suficiente do dano...
Fontes: Acórdãos do STJ, Processo no 736/03.4TOPRT.P2.S1 de 21-03-2018 e 90/2019 de 6-2- 2019 do TC com o voto de vencido de Fátima Mata-Mouros, artigos 119o e 373o e ss. Código Penal; Decisão Instrutória da Operação Marquês, pp.1047-1055.
Miguel Guerreiro
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